Quim Barreiros, Nel Monteiro, Mónica Sintra ou Ágata são levados para terras da canção jazz ou pop/rock por Bruno Nogueira e Manuela Azevedo. Deixem o Pimba em Paz, depois de várias datas pelo país, apresenta-se quinta e sábado nos Coliseus de Lisboa e Porto. Sem querer salvar ou crucificar a chamada música pimba.
Bruno Nogueira chama a Deixem o Pimba em Paz “um espectáculo de desconstrução”.
E, de facto, quando o ouvimos declamar 24 Rosas, de José Malhoa, em tom de diseur latino romântico ou cantar Azar na Praia, de Nel Monteiro, como se fosse um tema entre o dixieland de Nova Orleães e a música de saloon, ou até mesmo quando Manuela Azevedo (dos Clã) agarra em Sozinha, de Ágata, e a transforma numa canção que poderia ser recuperada do reportório teatral/cabaret de Édith Piaf, percebemos que aquilo a que se chama pimba está a ser desmantelado diante dos nossos olhos e ouvidos. E se o riso – por se tratar de Nogueira e o arranque se fazer com esse tom inesperadamente enfático de 24 Rosas – ainda sai com facilidade de início, logo se percebe que a presença do humor em Deixem o Pimba em Paz é quase fortuita e trazida sobretudo à tona sempre que emergem criações de Quim Barreiros.
“Há temas que são propositadamente engraçados”, reconhece Bruno Nogueira ao PÚBLICO. “O Quim Barreiros tem muito disso, desses temas mais brejeiros, com letras muito engraçadas – nem que eu tirasse quatro cursos lá fora conseguiria fazer o mesmo e para ele aquilo é natural.” E exemplifica com o refrão que nos ensina que o melhor dia para casar “É o 31 de Julho / porque depois entra Agosto”. “Isto, para mim, não é Alexandre O’Neill mas está lá perto”, comenta. Depois, há um conjunto de outras canções que “infelizmente para os autores, são tão trágicas que dão a volta e acabam por ser desconfortavelmente engraçadas”. “Gosto desse desconforto porque a música não foi feita com esse fim. Essas músicas, de forma um pouco perversa, dão-me um quentinho”, confessa. Entre elas incluir-se-á, provavelmente, Vem Devagar, Emigrante um trágico épico familiar da autoria de Graciano Saga que Manuela Azevedo reconhece ter sido “essencial e quase de definição” daquilo que procuravam para o projecto.
O projecto nada tem de risível quando Na Minha Cama com Ela (Mónica Sintra) é apresentada com um insuspeito fulgor pop ou Comunhão de Bens (Ágata) se mostra como uma sombria e dramática balada ao piano, tudo cortesia dos arranjos do pianista de jazz Filipe Melo e do guitarrista pop/rock Nuno Rafael (director musical de Sérgio Godinho). A prova de que as cartas se baralham na totalidade é inequívoca nos convidados chamados ao palco: Camané e Marante (cantor do Grupo Diapasão), predisposto a levar o seu tema Som de Cristal para terras de um crooning que Tony Bennett e Jamie Cullum não desdenhariam, numa canção que fazia parte da “fantasia de música pimba” de Nogueira. E que obriga à conclusão de que tudo está nas pequenas escolhas de cada um. Se Marante cantasse habitualmente neste registo a sua
imagem pública seria outra. A mesma coisa se tivesse calhado Camané ser vocalista do Grupo Diapasão.
“Isto está para lá do humor”, defende Manuela Azevedo, colocando Deixem o Pimba o Paz no mesmo patamar de Odisseia, a série que Bruno Nogueira e Gonçalo Waddington criaram para a RTP. “A maneira de o Bruno utilizar o humor faz-nos olhar para as coisas de forma diferente, é mais desafiante do que parodiante, e acho que quem gosta do trabalho dele gosta dessa vertigem que ele coloca naquilo que faz. Embora haja coisas que nos fazem rir, têm que ver com desconstrução, com rirmo-nos de nós próprios, da realidade e dos clichés de muita gente.”
Deixem o Pimba em Paz funciona, por isso, como um espelho de efeito duplo virado para o país. Por um lado, celebra de forma descomplexada a sua cultura popular, mais genuína e menos preocupada com aquilo que deve ou não ser, confrontando o público com essa massa de povo de que faz parte (enquanto em palco os intérpretes assumem a sua inscrição nessa cultura, mesmo que torcendo-lhe alguns códigos). Por outro, obriga também cada um a escarafunchar nas suas certezas e nos seus preconceitos. São as subcamadas óbvias debaixo do desejo inicial e simples de montar um espectáculo. “Fizemos isto para nos divertirmos”, diz Nogueira. “Não queremos dar lição nenhuma, não há aqui nenhuma moral nem nenhum olhar sobranceiro sobre a música. Não temos vontade nem nos cabe esse papel de evangelizar pessoas para o que quer que seja. Isto não pretende pôr a música pimba num altar nem num cadafalso É só um espectáculo.” PUBLICO.PT
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