Texto de Cristina Branco
O relacionamento dos emigrantes portugueses com a nacionalidade e com a cultura portuguesa é anárquico e ambíguo. Tirando os acessos de nacionalismo exacerbado pela visão da bandeira portuguesa e pelo futebol não conheço em França outra cultura tão mal tratada como a Portuguesa. Longe de ser um estudo sociológico ou psicológico da comunidade, estas palavras são a expressão do sentimento e da vivência numa comunidade que ora esta de mal com o país, ora tira as bandeiras do baú e as põe a janela.
Cinquenta anos depois da grande vaga de emigração, da chegada em massa dos portugueses a França o que mudou no olhar dos franceses em relação a nos? Olhar marcado pelos imensos bairros de lata nos arredores de Paris onde milhares dos nossos conterrâneos de instalaram, alguns com a família. Olhar marcado pela miséria e pelo miserabilismo, iletrismo, alvo de curiosos, sociólogos, boas almas, mas também de todo o oportunismo que a miséria atrai. Hoje longe dessa realidade que não podemos negar , no que se tornou a nossa comunidade?
Progrediram, os filhos estudaram, formaram empresas, inseriram-se na sociedade francesa, ocupam cargos de relevo. Mas continuamos 30 anos depois da “Mala de cartão” de Linda de Suza os pássaros da “Gaiola Dourada” comédia tão politicamente correcta quanto bem-sucedida, porque cola com perfeição a imagem que os franceses têm e querem manter cristalizada dos portugueses: uma abnegação bacoca da própria existência, filhos bem formados mas envergonhados da situação simplória dos seus, um aspecto cultural baseado na alimentação, família e música popular.
Somos uma comunidade culturalmente marcada pelo fado, futebol e folclore.
Queremos uma imagem diferente da nossa comunidade, mas o programa de grande parte das associações culturais continua baseado na cultura populista e regionalista.
Os grandes vultos da cultura portuguesa, tais como Siza Vieira, Camões, Mário de Sá Carneiro entre outros que passaram pela capital francesa, atingem apenas uma pequena minoria que é considerada pelos demais como snobes e elitistas. Elevar a cultura portuguesa ao nível mais elevado é considerado uma bofetada na cultura popular, um renegar as raízes, e “aquilo que somos e de onde viemos”. Não há meia medida, há uma casmurrice quase infantil e primaria de que gostar do clássico é humilhar o popular.
O teatro, a dança, a pintura, a fotografia, musica clássica portuguesa é uma batalha amarga para os que a levam avante. Pedem diferença, mas quando a diferença se lhes apresenta não a assumem, desprezam-na, ignoram-na.
Um pianista clássico com o repertorio das Melodias Rusticas portuguesas de Fernando Lopes Graça não achara tanto público como um cantor de melodias românticas ou um tocador de concertina com um repertorio dançante.
Os escritores ditos de emigração esgotaram até ao tutano a formula da “Mala de cartão”, os relatos de miséria e iletrismo de um povo obrigado a passar a fronteira a pé, relatos nobres cheios de sofrimento pessoal mas que não cessam de repetir a mesma historia com nomes e paisagens diferentes e que só contribuem para a eternizar a imagem do português pobrezinho iletrado, descalço e das aldeias onde ainda se anda de burro.
Curiosamente e paradoxalmente, o português é avido de títulos e doutoramentos, de honras e mordomias. Somos definitivamente um povo de grandes contradições que canta um fado desgraçado, pais onde o negro é cor e o vermelho dos fulgurantes corações do Minho sobressai da tristeza do negro das vestes. Contraditório na forma de amar o país, de promover a cultura, desunido entre a própria emigração.
Que aspira ao reconhecimento mas vive em serventia, uma serventia que os leva a aplaudir e a identificar-se com a serventia humilde das personagens da “Gaiola Dourada”.
Cinquenta anos depois da grande vaga de emigração, uma nova vaga de emigrantes chega para se juntar a estes, empurrados pela crise que assola a Europa e especialmente os países mais pobres como Portugal. Alguns trazem diplomas, muita formação, mas a formação ainda não rima com informação.
Continuamos de momento, uma comunidade humilde, terrivelmente humilde, que prefere aspirar entradas de prédios que aspirar ao mais alto nível.
Quando assumiremos que o Português também é a língua dos maiores poetas e trovadores e que não somos só tocadores de concertina e mas também pianistas? Que não comemos todos, bacalhau, e que somos muito mais que importadores de mão-de-obra barata e bem formada?
Ser português no estrangeiro é um Fado, destino, fatalidade. A certeza d’uma luta constante contra o preconceito dentro e fora do próprio país. Luta constante para não se deixar moldar ao formato politicamente correcto do emigrante português. Luta contante para guardar a própria identidade, o historial pessoal e familiar.
Luta constante para assumir a intelectualidade e o amor a arte e as letras sem que isso seja visto como um desvio grave do sistema a que nos querem encerrar.
Quantos anos farão falta para que Camões esteja ao nível de Shakespeare e que se lembrem que Fernando Pessoa é uma dos mais prolíficos escritores de sempre? Que não somos apenas os grandes exportadores de mão-de-obra bem formada e pouco informada?
Extrato do número #10 de Revista de Artes e Ideias - Alma Azul
Ilustrações de Catarina Sobral
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