O retrato do Portugal em crise que vive por detrás dos montes, num documentário ao estilo de João Canijo, cheio de histórias para contar
Os efeitos devastadores da grave crise económica são um tema urgente no cinema português, numa compreensível vinculação do artista ao seu tempo, à sua circunstância e ao mundo em redor. Tal transparece de forma gritante n'As Mil e Uma Noites, de Miguel Gomes; tal como neste Portugal - Um Dia de Cada Vez, de João Canijo e Anabela Moreira, a primeira parte de um longo projeto que pretende fazer uma espécie de radiografia de um país em crise. Os registos são distintos e, de alguma forma, complementares. Miguel Gomes opta por um realismo onírico, passe-se a contradição, em que a fantasia e a realidade convivem lado a lado, com cruzamentos ocasionais, e muitas vezes ao serviço de um experimentalismo narrativo e cinematográfico. Canijo e Moreira optam por um estilo mais clássico, num documentário mais cru, objetivo e eficaz. Portugal - Um dia de Cada Vez confronta-nos com pedaços de realidade não filtrada (na aparência) de famílias de aldeias e vilas do interior transmontano.
Os realizadores mostra-nos que esse documentarismo de proximidade manifesta-se numa forma íntima de contar histórias. E, como acontece sempre com João Canijo, o registo é profundamente cinematográfico e artístico, afastando-se radicalmente, por exemplo, da assinalável experiência televisiva da série de documentários Portugal, Um Retrato Social.
Tal acontece por uma questão de postura, em que se dá a primazia ao cinema e sua subjetividade inerente, e não a uma responsabilidade científica que obriga a escolher casos exemplares sociologicamente pertinentes. O filme de Canijo e Moreira obedece antes a preceitos artísticos e estilísticos e não científicos.
Logo à partida há uma opção por um estilo de documentário não participante, em que as personagens comportam-se como personagens de ficção, abstraindo-se da câmara, dando-nos a sensação de que estar perante a sua vida sem artificialismos. Tão pouco há uma contextualização narrativa em voz off ou através de separadores. Tal como havia feito através da montagem de imagens de arquivo em Fantasia Lusitana, aqui as imagens falam por si, sem recursos a qualquer subterfúgio para além da edição.
Por outro lado, dentro da aparente abrangência de retratos, que vai desde uma escola de província onde se aprende francês, à romena que trabalha na vinha em redor de Vila Nova de Foz Côa, permanece o fascínio pelo universo feminino, que é uma imagem de marca de João Canijo ao longo de quase toda a sua filmografia. Também este Portugal - Um Dia de Cada Vez é um filme de mulheres, em que os homens aparecem como meros figurantes das suas história. Certamente há uma inquietação sobre a profundidade do universo feminino, mas talvez também haja neste caso a intenção de fazer sobressair a ideia de mátria, tão forte também no Portugal contemporâneo.
Imiscuindo-se na crise, em casos pessoais e talvez exemplares, num Portugal esquecido pelos grandes centros urbanos, Canijo e Moreira revelam que a crise chegou a este Portugal remoto décadas antes da troika, num sucessivo desinvestimento e consequente desertificação. Talvez este seja a mais importante ilação sociológica a tirar do filme.
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