"Fomos conhecer a Alfaiataria Piccadilly, em Lisboa, de onde saem fatos por medida que custam milhares de euros. Esta é a história de João Ribeiro, um dos derradeiros resistentes de um ofício em vias de extinção
A mulher está sentada num banco de madeira junto à janela do edifício no primeiro andar da Rua Anchieta, bem no coração do Chiado, em Lisboa. Curvada para a frente e com os óculos a escorregar-lhe para a ponta do nariz, pega numa linha, enfia na agulha e começa a coser, em gestos elegantes e treinados, a manga de um fato. O tecido que ela segura com os dedos curtos e roliços é o que realmente importa, mas os olhos do repórter fogem para o acessório. Estampadas na camisola da costureira estão duas palavras que são a antítese perfeita deste espaço: Zara Woman. É que as peças que daqui saem são para cavalheiros distintos, dispostos a pagar entre 1200 e mais de 5000 euros por um fato. Nem vestígio do pronto a vestir quase instantâneo e a preço de saldo do gigante espanhol da fast fashion. Contra um bom fato, não há argumentos.
João Ribeiro, 65 anos, é o mestre da Alfaiataria Piccadilly, que quase parece saída da londrina Savile Row, meca dos fatos por medida. A casa tem quase um século de história. Por lá andou, por exemplo, Aquilino Ribeiro, conhecido por ter os bolsos sempre deformados devido ao excesso de coisas que neles enfiava. Mas se não fosse este alfaiate, natural de uma pequena aldeia alentejana, a Piccadilly já teria desaparecido. Há três anos, quando as anteriores instalações, num primeiro andar da Rua de São Nicolau, ali bem perto, foram ocupadas por uma loja de uma cadeia de sanduíches, foi ele que resgatou a histórica casa da morte certa.
Com mais de meio século de carreira, Ribeiro sabe bem que o ofício de um alfaiate é uma contradição nestes tempos do consumo rápido. Leva uma vida inteira dedicada a tornar os outros mais elegantes com fatos de fino corte. Tinha 11 anos quando começou, mas não foi uma escolha. “Naquela época não se escolhia”, conta ao Expresso, momentos antes de ser interrompido por um jovem advogado que veio experimentar um fato. Em Benavila, no concelho de Avis, fazia-se a quarta classe e depois ia-se trabalhar. Como ele tinha um tio que era alfaiate na vila, foi aprender com ele. “Não era algo que pensasse ser, mas experimentei e fui gostando.” Até hoje.
Quando voltou da guerra, 26 meses em Angola, ainda pensou dedicar-se a outra vida, mas depois apaixonou-se. Em menos de nada, estava casado. “Passei a ter outras responsabilidades. Já não podia pensar só em mim”, justifica-se.
Chegara a Lisboa com 15 anos, à procura de uma vida melhor. Era isso ou França. No interior, a vida não era fácil. Esteve quase três décadas na Alfaiataria David, uma das mais conceituadas da capital, praticamente até esta fechar as portas. Depois, em 1992, lançou-se por conta própria, adquirindo outra casa histórica, a Loureiro e Nogueira, fundada nos idos de 1930. Quando comprou a Piccadilly, já quase todas as alfaiatarias da Baixa tinham fechado. No Chiado, só resta ele.
Vestiu Mário Soares quando este esteve na Presidência. O atual secretário de Estado do Turismo, Adolfo Mesquita Nunes, também é cliente. Em Lisboa, haverá outra meia dúzia de alfaiates, não mais. Ele é um dos mais novos. “Qualquer dia já não tem alfaiates para entrevistar”, diz, com um sorriso de criança, a tentar sacudir o desânimo. Depois, o rosto fecha-se, torna-se sério. “Não vejo futuro para a profissão. Não aparece gente nova que queira seguir este ofício. É muito triste.”
Fotografias José Carlos Carvalho
Texto Nelson Marques
Commentaires