«Há tanto tempo que não tinha mãezinha» Foi com esta frase que Alfredo, 10 anos, abraçou a mãe, Alice, saída de cinco anos de tortura e prisão em Caxias. Uma de entre as muitas mulheres comunistas que foram à luta, passaram à clandestinidade e por isso pagaram o preço mais alto que uma mulher, e mãe, pode pagar, a separação dos filhos. Uma separação forçada pela ditadura fascista que dominou Portugal durante 48 anos. Seguem as histórias de quatro delas: Alice Capela, Faustina Barradas, Maria Carvalho e Teodósia Gregório.
Alice Capela
«Bata-me a mim, não bata ao meu filho»
Nascida e criada na Póvoa de Santa Iria, começou cedo o contacto de Alice Capela, 75 anos, com a luta antifascista. O pai, operário, era militante do PCP, assim como a mãe, e a avó. Apesar de a vida não ser folgada, os abonos de família iam direitos para o partido e a casa era ponto de apoio [casas legais que serviam de abrigo quando algo corria mal] para quem estava na clandestinidade. Destino que também o pai de Alice abraçou tinha ela 10 anos. A mulher e a filha segui-lo-iam um ano depois.
«Éramos três filhos e não pudemos ir todos. Como eu era fraquita dos pulmões fui eu, com grande dor da minha mãe». A avó, também operária, ficou com os dois netos, de 13 e sete anos. «Foi um grande sofrimento para os meus irmãos, na cabeça deles a minha mãe escolheu-me a mim. Compreendo-os muito bem, os meus irmãos e todos os filhos de funcionários que tiveram de ser separados dos pais foram jovens que sofreram muito.»
De cada vez que se formava uma casa clandestina era preciso inventar uma história de vida, Alice, que diz que queria ter sido atriz, garante que tinha muito jeito «era uma miúda que fazia muito teatro.» E nas quase duas décadas que viveu na clandestinidade teve de interpretar muitas personagens.
Com 13 anos aconteceu o primeiro duro golpe, «o meu pai foi preso, e muito torturado, fizeram-lhe muito mal, ficou lá nove anos». Sozinha com a mãe, «saltaram» para um ponto de apoio e pouco depois teriam de se separar.
Aos 18 anos começou a escrever-se outro capítulo da vida de Alice. «Fui formar uma casa com o Adelino Pereira da Silva, que é até hoje o meu companheiro. O Dias Lourenço [dirigente histórico do PCP já desaparecido e campeão de fugas das prisões da ditadura] levou-me e disse que éramos casados só a fingir, mas eu quando o vi ao longe achei-lhe logo graça. Ao fim de três meses éramos companheiros.»
Seguiu-se o inevitável numa altura em que a pílula tinha acabado de ser inventada e a contraceção era bastante falível, engravidou. «E quis ter o filho, para o Adelino gostar mais de mim. Em 1960 nasceu o Alfredo, em casa, com grandes dificuldades».
A ditadura não reconhecia como legítimos filhos gerados fora do casamento. ou Alice e Adelino oficializavam a sua união ou não podiam ver o filho. «Tivemos que nos casar por procuração, ele na prisão de Peniche, eu na prisão de Caxias».
Entretanto, o companheiro foi para a URSS e quando voltou foi preso. De ponto de apoio em ponto de apoio, com o filho de dois anos, acabaria por voltar a juntar-se à mãe numa casa que funcionava como tipografia e onde se imprimia a propaganda e imprensa clandestina do PCP. «Em papel muito fininho, para se poder esconder facilmente.»
«Ali estivemos, a trabalhar intensamente. O Alfredo tinha quatro anos, estava muito bem instruído, muito cedo percebeu os cuidados que tinha de ter». Até que o pior aconteceu. Era a madrugada de 13 de dezembro de 1964. Batem à porta. À pergunta «quem é?» respondem que é o leiteiro. «Àquela hora não podia ser, percebemos logo do que se tratava, e começámos a queimar os papéis. Nisto nove homens arrombam a porta com um pé de cabra e apontam-me uma arma, “Mãos no ar, somos da PIDE”. Eu e a minha mãe começámos a gritar quem éramos e o que se estava a passar para os vizinhos ouvirem. Mas eu não queria fazer muito barulho para não assustar o meu pequenino, de olhos esbugalhados a olhar para aqueles homens armados. Eu não o largava, muito louro, muito bonito, e eles logo com a chantagem: “que criança tão linda”.»
Foram levados para Caxias. «Eu e a minha mãe fomos juntas para uma cela, com o Alfredo. Eu andava sempre com ele atrás e os pides diziam: “há-de servir-te de muito andares agarradinha a ele”, eu não respondia àqueles assassinos, até porque não queria assustar o meu menino. Disseram que, se não arranjasse ninguém para ficar com ele, o davam para um asilo. Não sabia a quem o entregar. Eu e a avó presas, o meu pai, o Adelino e os avós paternos presos também…»
Conseguiu através de uma visita contactar o irmão mais velho, já casado, e pedir-lhe que ficasse com o pequeno. Ele assentiu. O rosto de Alice ensombra-se. «Não gosto de me lembrar disto, são memórias muito duras. Eu preparei-o, fazia-lhe um grande teatro, dizia que nos íamos encontrar depressa.
No momento da separação, nas escadarias de Caxias, um pide perguntou “o que é que pensas que vais fazer?”, “vou entregar o meu filho”, “não vais não”, disse-lhe que tinha esse direito, que não podiam fazer isso, que ele não conhecia os tios, mas eles começaram a puxá-lo e eu tive de o largar. Ele gritava, os olhos cheios de lágrimas, deu um pontapé ao pide, que lhe respondeu com uma bofetada e eu gritei: “bata-me a mim, mas não bata ao meu filho” e desatei aos saltos, parecia um palhaço, dizia: “a mãezinha adora-te, depois quando sairmos daqui vamos fazer uma festa e a mãe vai contar-te muitas histórias”. Era pelo meu filho que fazia aquilo. Subia a escada e ouvia os gritos do Alfredo ao fundo».
Passados 15 dias o tio trouxe-o à visita, no parlatório, Alice não podia nem dar-lhe um beijo. «Disse-lhe que tinha muitas saudades e ele respondeu “Já conheço o paizinho. O paizinho é bonito”. O meu irmão tinha-o levado a Peniche para conhecer o pai.».
Mas a ditadura fascista não reconhecia como legítimos filhos gerados fora do casamento e ditou que ou Alice e Adelino oficializavam a sua união ou não podiam ver o filho. «Tivemos que nos casar por procuração, ele na prisão de Peniche, eu na prisão de Caxias».
«Diziam: “Ao teu filho vais vê-lo morto” e eu pensava nele e nos outros filhos todos do mundo, era por eles que lutava. Queria ficar louca para aquilo terminar.»
Esteve presa cinco anos. Queriam fazê-la falar. Torturam-na, mas esta mulher de aparência frágil à PIDE disse nada. «Estive cinco dias e cinco noites na tortura do sono. Não me podia sentar, nem deitar, tinha alucinações, via uma carantonha a sair da parede e depois via o meu bebé e estava a embalá-lo. Desatei aos gritos e eles enfiaram-me uma toalha molhada na cabeça. Eu gritava “assassinos, assassinos” e eles esbofeteavam-me, davam-me murros, atiravam-me contra a parede, insultavam-me, “puta, cabra”, diziam que eu estava amantizada com fulano de tal e que já tinham dito ao meu companheiro. Diziam: “Ao teu filho vais vê-lo morto” e eu pensava nele e nos outros filhos todos do mundo, era por eles que lutava. Queria ficar louca para aquilo terminar. Depois mudaram de tática, apareceu um tipo que era a cara do Adelino, eu sabia que era um pide, mas ele com muitas amabilidades, a ver se me fazia falar, com aquela delicadeza era perigoso, com outras podia resultar, mas eu desde pequenina que tinha sido avisada daquilo tudo. Sempre disse que tinha ideia de que se fosse presa não falaria, nunca que tinha a certeza que não ia falar. O que me dava força era ouvir aqueles gritos dos nossos camaradas presos em Caxias que viam que eu estava a sair e que não tinha falado».
Quando voltou à cela, a mãe não estava. «Veio passados quatro dias, eu estava com uma pneumonia dupla, e ela diz-me: “Ah, filhinha, tu não morreste!”. Também ela foi muito torturada e resistiu. Era uma grande comunista. Tenho muitas saudades dela. Tive que ter força para a tratar e foi isso que me salvou. Depois foi a vez de ela tratar de mim. Foram cinco anos de muita luta. Estavam lá muitas outras camaradas e tivemos de ter todas muita força.»
Quando saiu, o filho tinha quase 10 anos. «Foi muito estranho, não sabia o que fazer, apanhei um táxi para Entrecampos e de lá o comboio para a Póvoa de Santa Iria, e falava alto com as pessoas no comboio, era a hora a que regressavam do trabalho, dizia o que me tinha acontecido… Bati à porta, o Alfredo vem a correr e agarrámo-nos ao pescoço um do outro e rodámos, rodámos, rodámos, ele dizia: “mãezinha, mãezinha, há tanto tempo que eu não tinha mãezinha”. Uma semana depois fomos ver o Adelino, há sete anos que não o via. “Estás na mesma”, “Tu também”. Não estávamos nada, estávamos horríveis, muito magros.
Corriam os últimos meses de 1970 quando Alice, Adelino e o filho se juntaram novamente, agora na legalidade e deu-se o 25 de abril quando iam passar de novo à luta clandestina. Já não foi preciso.
Seguem as histórias de Faustina Barradas, Maria Carvalho e Teodósia Gregório, aqui https://www.noticiasmagazine.pt/2017/ate-amanha-mae/
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